Todos os Resenhados


{EM}GOMA

{EM}GOMA: Dos pés à cabeça, os quintais que sou – Capulanas Cia de Arte Negra. Vários autores.



Procurei palavras para dar conta das emoções, mas fui inteiramente inundada por todos os signos utilizados neste livro. E num rodopio no tempo me lembrei da infância, a minha e a de tantas outras crianças da minha rua, do convívio no quintal da casa que nasci. Lembranças boas e amargas também, mas principalmente boas. {Em} Goma é o resgate da gente feito pelas Capulanas, Companhia de arte negra, composta por jovens interessadas e envolvidas nos movimentos artísticos–políticos da cidade de São Paulo.
Ao romper barreira palco-público as encenações nos quintais das periferias da capital paulista, o lugar da dramaturgia se desloca da distância espacial palco-plateia para uma total familiarização e comunhão do corpo que encena para os outros corpos que: “No quintal todos se tornam iguais. O público passa a ser um convidado do dono da casa, recebe e dá, ao mesmo tempo, conhecimento. Não assiste. Vivencia.(Capulanas, pag.15).”


O livro trás registros relatos, prosa poética, poesias, fotos, ilustrações (desenho) e em anexo vem um DVD que documenta o trabalho realizado ao longo de um ano de ensaios, apresentações,diálogos e entrevistas com Raquel Trindade e Salloma Sallomão. Na ficha técnica é classificado como: teatro negro; dramaturgia e identidade; culturas negras e diáspora negra. É mais que isto é a ancestralidade negra falando nos quintais da periferia de São Paulo, através do (e no) corpo, da (na) alma e da (na)mente desaguando, ora com delicadeza, ora como um vendaval que movimenta uma torrente emotiva em nós.
Os autores de {Em}Goma são: Adriana Paixão, Alânia Cerqueira, Allan Rosa, Ana de Souza, Carla Lopes, Cassimano, Débora Marçal, Elizandra Souza, Guma, Flávia rosa, Julio Marcaren Naranjo, Karla Passos, Lucrécia Paco, Manoel Trindade, Pricila Preta Raquel (Kambina) Trindade, Salloma Sallomão Jovino da Silva, Zinho Trindade. Um livro inquietante, visceral e verdadeiro no qual várias linguagens se fundem naturalmente e deságua um rio negro de emoções e sabedoria da cultura e vivência afrobrasileira. Um trabalho para ser indicado nas escolas cumprindo com dignidade e sabedoria a lei 10639.



Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção.

Livro de Cristiane Sobral

Frente ao espelho o que se vê a refletir em jogos do inverso do verso? Frente ao espelho o que se vê e que nos versa na magia de nos revelar? O elo de nos desatam-se e nos despe, espelha e espalha formas. Começamos a nos ver segundo a nossa imagem e semelhança.
“Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até que não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a população do Brasil.(Garoto de plástico, pag. 28.)”.
E há muito sabemos que a população brasileira é negra, o que foi confirmado no último senso do IBGE. O livro Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção, é o espelho que Cristiane Sobral tira da algibeira da palavra, e na construção literária dos contos espelha os rostos sociais de uma sociedade que se nega enquanto negra.No entanto é necessário mirar-se. Inquietar-se. Olhar novamente e novamente olhar. Um jogo de espelho contra espelho. O reflexo e o refletido. O refletido e o reflexo. Até se tornar um todo.
“No seio das nossas famílias negras, com lugar para inúmeros filhos do corpo ou do coração, aprendemos a conviver com nossas misérias e farturas, simplesmente porque sempre é possível colocar mais água no feijão, temperar e sorrir ou chorar e seguir em frente. Os nossos velhos não morrem de amnésia dos asilos luxuosos. (Memórias, Pag. 58.).”
E depois de se perceber inteiro, caminhar de mãos dadas com a vida, o único bem que vale a pena guardar por muito tempo, até o ponto de entrega-la a guardadora final que é a morte.
“Hoje diante do espelho que reflete a nossa caminhada juntos, a nossa vida compartilhada, temos o prazer de seguir adiante, a construir a nossa estrada, a enfrentar desafios de uma vida de alegrias, dores e as eventuais surpresas da existência. (As visitas do meu namorado, pag. 93).”
Enfim, Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção nos faz olhar, crer, refletir e perceber-se diante do espelho da vida.
“Sigo a crer nos meus espelhos mágicos. Uma coisa é certa: a nossa ancestralidade continuará na memória dos nossos descendentes enquanto pudermos lembrar e levar adiante os seus princípios. (Memórias, pag. 58.)”.


Enquanto o Tambor não chama.

Livro de Sergio Ballouk.

Primeiro livro solo de Sergio Ballouk, paulistano que nasceu do ano de 1967 em pleno carnaval. Ouviu o chamado do Tambor e deu o primeiro choro para anunciar que se inseria no desfile da existência. No bairro da periferia de São Paulo, Vila Guilherme, o tambor da escrita despertou o poeta e escritor no menino, adolescente, adulto que imaginava mundos a partir do seu mundo e brotaram nos sons dos tantans, tantas palavras.

O tambor um instrumento que se toca com as mãos nuas (na maioria das vezes) sobre a membrana (pele) curtida ao sol e esticada sobre um suporte de ressonância, em rituais, orquestra e baterias de escola de samba, que ao toque emite sons que seduzem. As palavras são sons: que falam; que avisam; que choram; que riem. Sons que vão ao longe, longe percorrendo, penetrando emoções, sons prontos para se incorporarem em poemas e ficções, eletrificando consciências entrelaçando os sentires cadenciando, chamando.
O tambor já está chamando, aguce os ouvidos no baque, tibaque, tibaque, taque, baque, tibaque “no centro do terreiro/ e a roda grandiosa em festa/ é Exu Giramundo ou é o mundo que gira?”. O poeta vai afinando os versos encontrando-se na melodia da escrita, aguardando a chamada de mais um poema que vem vindo:

Só as mulheres sangram

Livro de Lia Vieira




A natureza é feminina em gênero e grau. Assim parece que Só as mulheres sangram, em silêncio ou em alvoroço. Mães, irmãs, guerreiras, heroínas, amantes, mártires, prostitutas, amadas e condenadas, admiradas e ignoradas, sangramos continuidades e persistências. Este estado constante cotidiano de ser e estar sempre se renovando em movimentos diuturnos, nos faz responsáveis pela criação e procriação. As musas da inspiração sopram belezas para os artistas reproduzirem.
Só as mulheres sangram, um jorrar ininterrupto que nos torna trans–e–lúcidas. Ávidas de vida. Infinitando toda a certeza dentro da grandeza e limitação. Com a crença na força da palavra e do verbo, constrói-se uma frase, uma página, um livro. Assim como uma lágrima constrói um oceano dentro de cada um, no vai e vem das ondas misturam-se quem chora e quem é chorado. Haja ondas! É neste oceano de movimentos ininterruptos que Lia Vieira se inspira retira e escreve as estórias no livro Só as mulheres sangram, como deixa explicita na dedicatória:
"Para aquelas que, hoje, sangram relacionamentos, solidão, medo confinamento espiritual, perdas exílio, violação, feridas, cicatrizes, dor. Para aquelas que proclamarão, a cada dia, o fim da exploração e da opressão e se moverão sobreviventes em direção à liberdade.”
A escrita de Lia Vieira vai sangrando nas folhas do livro escrevendo vidas, existências, resistências e reticências prosseguindo firme no legado de ser guerreira das palavras, soltando a verve, o verbo transmudado em espadas. É a loucura sã da escrita soltando o verbo neste universo que, às vezes, desune as mãos, fazendo sangrar. Deixo como exemplo o trecho do conto Maria Déia:
"Estou sozinha com a maçã e meus pensamentos. Estes são ácidos como aquela. A marca de meus dentes da polpa da fruta é perfeitamente visível. Outras marca há que sei que fiz.
Aos cinco anos, dei dentada no menino que me chamou: “Neguinha, gambá.”
Aos nove anos, no meu primeiro dia de feira, marquei de unhas a um moleque vendedor de pamonha e curau de milho, que, se sentindo valentão, disputou comigo o ponto de venda.
Aos doze anos, marquei com a cruz de tinta a casca de uma tartaruga do mato, soltando-a depois na esperança de, algum dia voltar a encontrá-la... E nunca mais!”

InCorPoros - O erotismo negro, Eros ou Exu: Uma reflexão prazerosa.


Erotizar a fala poética não é só nos utilizarmos da simbologia consagrada ao deus Eros, que é grego, cujo nome suscitou a palavra erotismos. É bom lembrar que outros deuses mitológicos das várias culturas da humanidade também têm o simbolismo de explicar o exercício das ações humanas relativos ao “erotismo”, e infelizmente seus nomes ou denominações não foram utilizadas como raiz, sufixos ou prefixos para alguma palavra que representasse esta atitude. Erotizar para nós poeta/escritoras/escritores negros, é dar vazão a representatividade cultural do corpo que está inscrita nos mitos e lendas sobre os Orixás, são transmitidas, de forma oral nos terreiros de candomblés e umbandas. Permanecendo vivos na nossa cultura coletiva, apesar do sincretismo religioso impor uma falsa moralidade suprimindo todo o caráter de sensualidade e de erotismo das histórias.
Quando leio os poemas e textos dos escritoras/escritores negros, principalmente aquelas/aqueles que afirmam estar fazendo uma literatura negra, isto é, ligadas as tradições culturais e vivenciais da população afrobrasileira, afrodiaspórica e africanas, sou levada a imaginar que os símbolos utilizados têm influência deste lugar de criação escolhido. Assim sou instigada, não só como leitora, a entender e penetrar neste universo, que pode ser para muitos, desconhecido, negado ou marginalizado. A maioria dos simbolismos utilizados para exemplificar ou nominar as ações humanas advêm principalmente das culturas greco-romana ou judaico cristã.
Torna-se importante, para uma leitura e análise atenta, levar em conta a mitologia dos Orixás, principalmente num país que se orgulha de ser uma mistura cultural e racial. O erótico é Eros na palavra, mas se tratando de nossos corpos negros o InCorPoros trás outras noções e leituras possíveis. Um mergulho na mitologia dos Orixás poderá nos transmitir outras noções, outros parâmetro, outras idéias que fazem parte das culturas africanas transplantadas para o Brasil. São outros entendimentos com relação ao corpo, o prazer, e o sexo certamente divergentes das impostas aos africanos escravizados e/ou colonizados e conseqüentemente aos seus descendentes.
A riqueza de detalhes das histórias mitológicas que envolvem os Orixás, como por exemplo, Oxalá e Nanã, Ogum e Iansã, Xangô e Oxum, Iemanjá e Oxossi, entre outros, ressaltam conflitos, lutas pelo poder além das relações prazerosas e sensuais que, aliás, são os componentes dos mitos e lendas de todas as culturas. A respeito do símbolo do prazer do sexo Exu seria a representação máxima se nos basearmos na sua representação em alguns terreiros de Candomblés onde é simbolizado com um bastão em forma de pênis, chamado de ogô. E na forma feminina é chamado de Bombogira ou Pombagira e o símbolo é uma vagina esculpida numa cabaça, ou forjada em ferro (simbologia que está ficando cada vez mais rara).
Os escritoras e escritores negros a partir do toque das pontas dos dedos no teclado, ou empunhando a caneta (que por sinal tem forma fálica), se apossam e re-apossam dos significados dos próprios corpos. Deixando que as palavras traduzam o gozo de ser e escorra para o papel, ou para a tela do computador, o mel da nossa melanina íntima e sentir os poros se abrindo através do ato de criar. É necessário adentrar nesta zona erógena da literatura negra e fazer a ponte que nos conecta, segundo Audre Lorde “as expressões físicas, emocionais e psíquicas do que há de mais profundo e forte e farto dentro de cada um de nós e compartilhar: as paixões do amor, em seus mais fundos significados.” Enfim, empoderados dos nossos corpos negros resignificá-los e exercitar o prazer solitário da escrita para que as palavras possam abraçar e gozar com todos os leitores que se abrirem ao contato sem pudor ou falso moralismo.



InCorPoros - O erotismo negro


“O erótico não é sobre o que fazemos: é sobre quão penetrante e inteiramente podemos sentir durante o fazer. Audre Lord.”

Esta frase da Escritora norte americana Audre Lord me fez pensar nas delícias que desvendam os segredos dos lugares mais prazerosos de nossos corpos despertando inundando de sensações os sentidos, soltando a imaginação, incitando a percorrer mundos. Os segundos do instante-êxtase que se torna infinitos, e ofegantes somos capazes de exercer o poder de nós autodesfrutar, autoconhecer ou se reconhecer. Audre afirma que é “exercitando o erótico que mora no interior de nós enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados”, nos tornaremos suscetíveis a experimentar novas sensações e nos apossarmos do prazer, tanto de sentir como de proporcionar.
As sensações do erótico nem sempre são proferidas para muitos, mas aqueles/aquelas que por força do exercício da palavra se designam escritoras∕escritores e poetas e assume para si a função de dizer relatar, com arte, os sentimentos e sentidos da existência humana que carrega todos os sentir, as emoções advindas do ato humano no contato corpo a corpo é um campo rico de inspiração.
O exercício erótico da palavra quando o escritora/escritor for negro/negra se transforma no grande desafio de se desvencilhar da carga simbólica, que social e historicamente o corpo de um homem negro e de uma mulher negra carrega. Ou seja, tomar posse e resgatar o sentido de um corpo é ter que resimboliza-lo, livrando-o das cargas diversas de estereótipos sobre a sensualidade e sexualidade, por exemplo: se for homem negro tem a obrigação de ser bem dotado, o símbolo do pau grande; se for mulher negra representa o pecado libidinoso das tentações do homem, principalmente branco. Nos dois exemplos são corpos brinquedos, corpos objetos de dar prazer.
O livro de poemas InCorPoros: nuances de libido, com dois jovens autores Akins Kintê eNina Silva, preenchendo as 80 páginas , nos leva as delícias do prazer da autodescoberta do corpo-libido-negro. Ao exercer o prazer solitário da leitura, os sentidos nos levam ao ato do encontro onde se faz necessário tocar-se, apalpar-se e reconhecer-se em palavras-sentidos-sentimentos, incitando a atitude de nos pertencer, nos livrando da prisão de significados depositados sobre o corpo-libido-negro.
Despudoradamente vamos apreendendo que o erótico é a energia da penetração em nós mesmo, onde a fala se transforma num falo que escritoras/escritores/poetas, podem manusear ao seu bel prazer e penetrar com toda a plenitude no mais intimo da palavra que vaginando se abrirá no mais intenso gozo inundando os enunciados do corpo negro ocultado, vilipendiado, estuprado em camas literárias alheias a nossa vontade.

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